quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Uma luz que se apaga

Uma luz que se apaga


Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Renato Sant’Ana

Há pessoas que, ao partir, nos deixam a sensação de que o mundo ficou menor e mais triste. Eu sei, é transitório. Mas, surpreendidos com a irremediável ausência de alguém que adquiriu profundo significado em nossa vida, o sentimento que vem é o de que estamos mais pobres e mais sós. Tal foi o estranhamento perplexo dos admiradores que, no ócio dominical, receberam a notícia: o poeta Ferreira Gullar agora pertence à eternidade.

Ele parecia tão próximo! Incontáveis entrevistas na TV, a revelação de grandes perdas pessoais que o maltrataram e a dignidade para encarar o sofrimento, as suas colunas instigantes no jornal e a sua poesia vigorosa - ora trazendo alento, ora suscitando uma compreensão mais profunda do mundo - permitiram conhecer não só um inspirado poeta, mas também um grande homem. É natural que haja suscitado uma admiração afetuosa com um quê de familiaridade. Mas agora ele já não está!

Adjetivado um dia por Vinicius de Moraes como "maior poeta brasileiro", Ferreira Gullar é (digo-o no presente) homem LÚCIDO e de uma indisfarçável HONESTIDADE INTELECTUAL, duas virtudes que o elevam como GRANDE entre os maiores. Tradução precisa da realidade, sua poesia enfrenta as contradições deste mundo e se dedica aos que não têm voz e necessitam dos poetas: eis a sua coragem e lucidez. Dito "homem de esquerda", militou na política apegado a crenças que, no passar do tempo, se mostraram ilusórias e avessas ao genuíno anseio de justiça que sempre o animou. Pois ele, em vez de agarrar-se irredutível ao artifício de uma bandeirinha partidária, teve coragem para encarar a realidade, admitir as evidências do equívoco e repelir o dogmatismo ideológico: EIS a sua HONESTIDADE INTELECTUAL. E, assim, lúcido e franco, foi condecorado - por espécimes da esquerda mais sectária, dogmática e raivosa - com os insultos mais virulentos, palavras envenenadas e hostis.

Nada, porém, lhe tirou o bom humor: viveu intensamente e, tudo indica, muito feliz até a última hora, o que é um consolo para quem fica.
"Se você me ama, me deixe ir embora", disse o poeta à esposa Claudia Ahimsa, pressentindo o fim. "Ele foi num momento de muita paz. Foi como um pássaro brincalhão", relatou Luciana Ferreira, sua filha, acrescentando: "O apelido dele de infância era periquito." E porque jamais será pretérito, o poeta é assim definido por ela: "É uma pessoa que vive a sua identidade até o fim. Ele muda suas opiniões para manter sua identidade."

Foram umas três semanas de permanência no hospital, internado com um quadro de pneumotórax. Aliás, mesmo no leito, não parou de trabalhar. A insidiosa e fatal pneumonia - que lhe tirou a vida, não a paz – veio depois, diagnosticada dois dias antes da partida. Foi medicado com antibiótico, mas pediu para que nenhuma outra intervenção fosse realizada. "Se você me ama, me deixe ir embora", serenas palavras do sábio.

Mas até que se iniciasse a travessia, a vida fluía natural e alegre: usava o transporte público, ia sozinho à padaria e à banca de jornal, fazia as compras no supermercado, conhecia todos no bairro, "desenrolava os próprios problemas", como diz a sua amiga e editora Maria Amélia Mello. Cabelo branco esvoaçante, o passo ligeiro (apesar dos 86), o poeta andava nas ruas parecendo alheio a seu próprio significado, ao prestígio de insigne brasileiro, à devotada admiração dos circunstantes. É assim com os sábios.

Agora já não está! Mas nossa pequena orfandade há de ser transitória. A sombra da ausência logo se extinguirá, porque a obra imortal tem o condão de iluminar, perpetuando sua presença: ele é a poesia que nos consola e nos chama à vida. Terá mesmo ido embora? Uma luz se apagou na terra, mas uma estrela surgiu para sempre no céu.


Renato Sant'Ana é Psicólogo e Bacharel em Direito.

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