Neste exato momento, o medo estacionou à porta daqueles que conduziram o Brasil até aqui. Leia-se: políticos e seus partidos; imprensa e seus olhares; academia e seus intelectuais; e todo latifúndio de pensamento que construiu o tal do “espírito nacional”, tratando de assegurá-lo a uma ínfima minoria de “condutores”. Estes estavam confortavelmente instalados no timão dos conceitos de democracia e república que criaram, guiando a nau rumo ao “berço esplêndido” de seus interesses. Agora, diante de duas semanas de portentoso eco de rejeição emergindo das ruas, fingem ignorar seu cerne e continuam tentando manipular vozes, palavras e ações. Querem ganhar tempo para avaliar o adelgaço da lâmina e o alcance da guilhotina.
Abra jornais, revistas e portais de notícias ou ligue a televisão em qualquer das emissoras brasileiras abertas ou por assinatura e você encontrará um conveniente e uniforme viés de interpretação para o levante de protestos que varrem o país de norte a sul: “trata-se de um movimento sem líderes, com pautas e agendas difusas e que, fundamentalmente, rejeita com veemência todos os políticos e seus partidos”. Uma doce pílula de alienação que pretende alimentar a crença de que a aviltante classe política é a única e suprema vilã do Brasil mazelar.
Ante a efervescência, mídia e academia apontam a iniquidade e a impunidade dos “operadores do Estado” como combustíveis da revolta e tentam se misturar às massas para “registrar” o momento histórico. Querem fazer crer que há uma considerável distância entre eles e aqueles que hoje estão no cadafalso. Cínicos elevados à enésima potência, tentam salvar suas cabeças privilegiadas sob a clássica defesa das liberdades e pensamentos de vandalismo mascarado a apartar-lhes dessa “operacionalização” falida. Na fotografia histórica não querem assumir a responsabilidade de estarem, também, na origem dos problemas. Tão somente, querem fugir da realidade e posar como solução.
Essa tentativa de fuga protagonizou as cenas mais ilustrativas dos últimos dias: jornalistas obrigados, como garantia de alguma integridade física, a cobrir as manifestações com microfones sem canopla, para que não sejam identificadas as marcas de seus patrões; carros da Rede Record e do SBT queimados em praça pública durante atos de selvageria; renomados repórteres agredidos violentamente não pela dignidade do exercício da profissão, mas pela indignidade de seus contratantes; colunistas de grande envergadura sendo amplamente hostilizados nos comentários de suas publicações digitais; a tensão nas editorias durante as chamadas “ao vivo”, in loco, temendo que a voz das ruas sobreponha a narração do repórter e revele que as fronteiras da insatisfação vão muito além das cercanias palacianas.
Outro dia, durante uma matéria da GloboNews, a jornalista foi silenciada pelo grupo de manifestantes em brado retumbante e insistente: “Globo, fascista, você está na lista!” Imagem e áudio são interrompidos e voltam para uma constrangida apresentadora de telejornal: “Vamos conferir como está o trânsito em São Paulo?”, tergiversou. Essa dinâmica se repete em todos os veículos de comunicação na tentativa sôfrega de esquivo de responsabilidades. É compreensível. Imagine se o levante popular começar a pautar a abertura da “Caixa de Pandora” da publicidade institucional? Que grau de revolta poderia causar a transparência das bilionárias planilhas de recursos públicos que são aportados mensalmente nos veículos de comunicação para exibirem as propagandas oficiais do agora demonizado “Brasil Maravilha”? Para além dos vazios discursos do lulopetismo sobre a “mídia golpista” e o “golpe das elites”, há sim um universo sombrio e sigiloso entre a politicagem e os meios de comunicação, ambos “operadores do Estado” e mamíferos de suas tetas.
A nata da intelectualidade — aqueles poucos que se beneficiam dessas “tratativas” entre governos e mídias e ganham como “prenda” o pote de ouro da visibilidade — está batendo cabeça. Tiranossauros do pensamento reúnem-se nas universidades, nas páginas de jornais e revistas e diante das câmeras dos programas televisivos na busca por um cerne ideal para a primeira grande revolta de massas brasileiras no século XXI, tentando não chamuscar suas próprias biografias e isentar de responsabilidades os meios de quem são porta-vozes. Finalísticos e em uníssono bradam: “há uma crise feroz de representatividade no Brasil”.
À leitura dessa “falta de representatividade”, querem emplacar a tese de que a guilhotina só deve ceifar a cabeça da bandidagem política e suas nauseabundas legendas. Numa espécie de “Versailles” contemporânea, Sarney desapareceu, Collor silenciou sua verborragia, Fernando Henrique Cardoso reduziu tudo à carestia, Lula tenta reunir seus sindicatos apaniguados e Dilma Rousseff foi humilhada em cadeia nacional num dourado discurso robótico — fê-la parecer o eterno C-3PO de “Guerra nas Estrelas” — repleto de generalidades e aviltantes equívocos. Os demais habitantes palacianos permanecem em silêncio ensurdecedor, salvo um ou outro debiloide institucional.
Daí a pretender circunscrever aos palácios aquilo que precisa ser transformado e adequado no Brasil é uma brutal sacanagem. A inflexão histórica promovida pelo acordar de uma geração demonstra, de forma inequívoca e com absoluta clareza, que o alcance da guilhotina é muito maior do que se pensa e se anuncia.
Por: Helder Caldeira é escritor, jornalista político, palestrante e conferencista, autor do livro “A 1ª PRESIDENTA” (Editora Faces, 2011, 240 páginas),Via: www.debatesculturais.com.brVia http://www.vejabemvb.com
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